Tuesday, August 27, 2013

Cartografia da espera

Estou sentado na cafetaria do Hospital dos Veteranos de Guerra, São Francisco, Califórnia. À minha direita uma vista totalmente aberta sobre o imenso nevoeiro que se abate sobre o Oceano Pacífico. Em frente, bem no cimo da parede, está uma televisão sintonizada no principal canal de notícias por cabo. Um mecanismo automático transcreve tudo o que é dito e apresenta-o em grandes letras brancas num fundo preto sobreposto à imagem.
Discute-se a passagem ao acto. Deverão os EUA participar numa nova guerra? Os comentadores não estão de acordo e vão esgrimindo argumentos. A imagem transita para a Casa Branca. Surge o vice-presidente, cabelo branco sobre um pano azul-cobalto. Mantém uma expressão dramática. Percebe-se que treinou a arte da persuasão antes de chegar ao palanque. Os comentadores voltam, num discurso cada vez mais frenético. Perguntam-se: O que estará o Presidente a pensar? Será pior matar alguém com uma bala do que com um químico? Intervalo. Anuncia-se um medicamento para a disfunção eréctil. Os riscos da droga dominam o tempo de antena: “Não deverá tomar YYY tiver problemas cardíacos”; “não tome YYY sem consultar o seu médico”. Voltam as notícias. As letras brancas corropiam no ecrã e parecem enchê-lo totalmente: “s-h-o-u-l-d---w-e---g-o---t-o---w-a-r-?”
Entre mim e a televisão há muitas mesas e quase todas estão ocupadas por médicos e enfermeiros. Comem e falam apressadamente, de costas para o ecrã. Ao fundo à esquerda estão alguns homens mais velhos, cada um sozinho na sua mesa. São provavelmente veteranos de guerra, os doentes deste hospital. Também não olham para a televisão. Preocupam-se em fazer chegar a comida à boca com gestos frágeis a que dedicam toda a atenção. Terão passado pela Coreia ou Vietname e agora, no hospital, são o museu vivo da glória e do sofrimento. Alguns já não comem e aproveitam para deixar cair a cabeça sobre a mão apoiando o braço num parapeito. 
A Sul daqui está uma cidade de onze colinas onde milhares de jovens vivem com os seus smartphones. Há Sillicon Valley e as start-up de biotecnologia. Uma nova ponte sobre a baía será inaugurada brevemente e com ela o gélido Verão de São Francisco deverá aproximar-se do fim.
Mas agora estou no Patriot Cafe, Hospital dos Veteranos de Guerra.
À minha direita as nuvens toldam o Pacífico.
Do outro lado, os homens esperam.

Thursday, August 22, 2013

Slam Poetry nos subúrbios



Através de experiências em grandes cidades por todo o planeta, tenho vindo a aperceber-me ao longo do último ano do quão especiais são os subúrbios por oposição aos centros citadinos cada vez mais impregnados de snobismo, futilidade e vaidade. É nos lugares suburbanos que pessoas diferentes vivem de igual para igual ao contrário das outras, afinal tão iguais a querer desesperadamente ser diferentes.
Em Oakland, Brooklyn, como em Cacilhas: adaptação e vida - seres humanos em todo o seu esplendor, em luta contra as adversidades do meio. Na cidade de São Francisco, no SoHo em NYC ou no Príncipe Real de Lisboa - nada.

Descobri recentemente que uma das melhores formas de perscrutar o fervilhante coração destes sítios é arranjar lugar numa sessão de Slam Poetry que por lá aconteça. Ontem, algures entre Oakland e Berkeley, num Irish pub forrado a posters revolucionários, ouvi Queen Jasmine, uma portentosa negra com voz rouca de contralto, falar sobre o seu bisavô nazi, herói da 2ª Grande Guerra. Também ouvi John, um beatnick agora na 3ª idade, falar sobre a herança do pai, que acidentalmente descobriu num cacifo duma estação de combóio perdida. E Logan Phillips (foto), num lindíssimo poema bilingue, bradou a vivência de se ser latino no Arizona e vítima de discriminação racial. Muitos outros foram ao palco e, quase sempre de cor, alguns em estados próximos do transe, fizeram jorrar emoções, imagens e sentimentos poderosíssimos e belos.

É nos subúrbios que a humanidade resiste e de onde a poesia naturalmente brota.

Tuesday, August 13, 2013

Burning Man

Todos os anos, no deserto do Nevada, bem perto da Califórnia, há uma espécie de reencenação do filme Mad Max. 
Durante uma semana é criada uma comunidade no meio do deserto. Vale tudo. No fim queimam-se todos os vestígios. Assim é o Burning Man. Começou no final dos anos 80, com 20 participantes, uma celebração estival como aquelas tradicionais na Europa por esta altura do ano. Em 2012 contou com quase 60.000 participantes. A ideologia também foi refinada. Tornou-se um encontro alternativo para as mentes mais loucas e livres da América. Eis alguns dos princípios: radical inclusion, radical self-expression, radical self-reliance, gifting, leaving no trace, immediacy, etc. Festa rija assente numa economia de troca directa, assim resumiria eu. 
É um evento difícil de descrever, aparentemente. No entanto, ser alguém que nele participa descreve uma pessoa. É, aliás, um estereótipo por aqui.
Vale a pena ler mais e ver fotos pela net.

Thursday, August 8, 2013

Freecycling

Uma boa parte da identidade do californiano e da californiana passa por tentar reduzir a sua pegada ecológica ao mínimo, idealmente zero.
Uma das maneiras de o conseguir é utilizar a rede de Freecycling.

http://www.freecycle.org/

O conceito é dar, em vez de vender, online. São criadas comunidades locais na rede ligadas à instituição original. Qualquer pessoa registada pode anunciar o que tem para dar ou do que precisa.

"Changing the world, one gift at a time". Este slogan é, tal como originalmente a palavra "Freecycle", marca registada. Há 4 anos, uma boa parte das comunidades no Reino Unido separaram-se da "plataforma-mãe" americana, por quererem mais liberdade na gestão. Parece que o conceito de dar é vivido com ambivalência nesta empresa (no fundo, talvez seja assim a nossa própria natureza).

Os esforços ecológicos e de sustentabilidade por este país nunca perdem o seu toque capitalista. O freecycling, apesar de tudo, é uma das iniciativas que mais se consegue afastar disso.
Este tema leva-me sempre de volta à brilhante análise de Slavoj Zizek que recomendo e que na Califórnia ganha toda a sua pertinência:


Thursday, August 1, 2013

A vida mediada

Nos Estados Unidos apercebi-me de uma cultura geradora de meios que se colocam entre as pessoas e a realidade. Penso que esse princípio se pode reflectir numa variedade de fenómenos diferentes. Tentando explicar melhor:

Entre nós e o mundo tem de se pôr qualquer coisa. Uma primeira explicação para isso é a de que a fruição directa do real seria avassaladora. Usam-se instrumentos para a aproximação ao mundo, mas toda a cautela é pouca (o mundo é um lugar violento e cheio de coisas más).
Drones.
Outra hipótese é a de que talvez assim haja um universo maior onde lucrar. A Terra é um planeta demasiado pequeno e desinteressante para toda a ganância que há por aí. O capitalismo pede outras superfícies de troca comercial além deste solo e deste mar. Ou então as duas explicações coexistem.
2nd life.
O mundo torna-se na verdade um meta-mundo de meta-mundos (o mundo humano será sempre um meta-mundo uma vez que é impregnado pela cultura).
Facebook.
Inventam-se objectos para resolver problemas criados por objectos por sua vez criados para solucionar outras questões perfeitamente irrelevantes.
Atendedores automáticos que reconhecem a nossa fala.
Um utensílio para atirar a bola ao cão (e assim não nos termos de baixar nem tocar em toda aquela baba de animal).

Ao mediatizar a realidade, o próprio meio confunde-se com o verdadeiro. Assim, por exemplo, uma série de televisão pode tornar-se um substituto satisfatório de coisas que costumávamos ver anciladas no real.
Newsroom.
Sons of anarchy.

Risos enlatados.


Hollywood.

Será este o modo de suportar o trauma da guerra e da violência? Ou será o contrário? Que a tendência para colocar separadores constantes em relação ao mundo dá azo a irresistíveis gestos em direcção ao real, violentos de tanta sede existir?

Tuesday, July 2, 2013

Preâmbulo

Quando cheguei à Califórnia havia uma greve.
De quatro em quatro anos, os trabalhadores do metro de São Francisco renegoceiam o seu contracto. Ao contrário do que  costumava acontecer - um acordo após uma madrugada de negociações - desta vez não houve entendimento e o BART (Bay Area Rapid Transit) parou, o que não acontecia desde 1997.

Vim do aeroporto de autocarro.
Atravessei a península com a baía à direita e uma suave cordilheira à esquerda. Estes montes podiam ser a serra do Caldeirão. Já a baía escapa a qualquer outra simples comparação com Portugal. São Francisco fica na ponta norte de uma península que olha, imediatamente acima, para outro pedaço de terra. Entre os dois há uma passagem de água (cruzada por uma famosa ponte vermelha) e por aí se entra num espaço de mar rodeado por terra em todos os lados menos um. The Bay. É uma área imensa que serve várias cidades.
Uma geografia tão especial dá origem a uma meteorologia complicada. O pôr do Sol tem cores que nunca tinha visto antes. A temperatura varia de hora a hora e de milha a milha. Há nuvens a correr o céu num frenesim. O trânsito nebuloso pareceu-me mais atribulado do que aquele em terra. Mesmo com a greve do BART. Há nuvens que sobem as colinas, para depois ficarem lá uns minutos e descerem  rapidamente sobre o oceano, aos pés da ponte vermelha. Se em Paris reinava a luz e em Lisboa o estuário, em São Francisco reina o vapor de água. E o vento.

Entrei no centro da cidade com a noite.
A rua é uma amálgama de turistas, sem-abrigo, loucos e outra gente a precisar de comprar qualquer coisa.
Avancei sem hesitar até ao sítio onde era esperado.
Bem-vindos ao Hostel.